LEÃO XIII E O MODERNO PENSAMENTO SOCIAL DO SÉCULO XX
Valdivino Pereira Ferreira , escritor, biografo, do Colégio Brasileiro de Genealogia.
A industrialização anglo-européia teve seu nascedouro na década de 1850 e o seu apogeu no limiar do século XX, em contraponto podemos dizer hoje vivemos a era da cibernética. Com a industrialização do processo produtivo, antes artesanal e limitado, há uma revolução não só econômica mas que atinge todos os pontos do espírito conjuntural sócio-cultural e etnológico que regem os princípios da ética humana e no seu campo mais sensível, que é o espiritual. Inclusive, e talvez até bem mais substancialmente do que nos parece, a religião propriamente dita. A nova ordem econômica gerada pelo processo evolutivo industrializante europeu que varreu primeiro o velho mundo e depois invadiu o novo, trazia em seu bojo muitas e inquietantes preocupações. Uma delas era como as coisas seriam conformadas ante o espírito puramente ético da comunidade religiosa planetária, ou seja, como se comportaria em seu enfeixamento de “ordens morais e regras já canonizadas desde o século III, d.C”, essa nova ordem ética nascente. Outra, e não menos preocupante para a Igreja Católica, em particular, seria a posição a ser adotada pelo pontífice naquele momento crucial.
Ora, desde 1848 Karl Marx [*05.05.1818—†.14.03.1883) e Friedrich Engels (†.05.08.1895), através da pregação comunista, já vinha inquietando a aristocracia detentora do capital, e a nobreza, detentora do mando político. Embora esses dois pilares se justaponham, eles as vezes andam separados por tênues linhas do pensamento “político” e pela ação cultural. Parece que Marx percebeu isso muito bem e investiu primeiro contra o poderio econômico concentrado em sua expressão religiosa (as ordens religiosas e Roma), e pouco depois investiu contra o poder político, concentrado em seu maior jaez na organização econômica. Primeiro Marx tentou destruir as relações da burguesia, que eram talvez amistosas no seu todo com a igreja, para partir depois para o rompimento propriamente dito das relações políticas, que também se enveredavam para a divisão de classes. A insurgência de Marx contra o modelo preconizado por Adam Smith (*5.6.1723—†.17.07.1790), que banalizou-se como o capitalismo liberal e selvagem, atraiu olhares cúpidos de alguns teólogos que pouco rezavam pela cartilha vaticana. Pouco ou nada dissera entretanto a diplomacia vaticana, nem expediu qualquer documento pontifício até 1891.
É natural que a Igreja mostrasse, ou antes expressasse, a natureza de seu olhar sobre essa nova ordem de coisas que surgia desde então, e conformasse naquele modelo, a nova ética católica a ser seguida doravante. E essa tarefa coube ao Papa Leão XIII, nascido Vincenzo Gioacchino Raffaele Luigi Pecci (*02.03.1810―†.20.07.1903), cujo pontificado durou de 20 de Fevereiro de 1878 até a data da sua morte. Pois é de sua lavra a enciclica “Rerum Novarum”, apropriadíssima para o momento―, “Das coisas novas”. Nascido em 1810 e eleito em 1878, Leão XIII viu o nascedouro do comunismo no continente Europeu, e o falecimento da antiga ordem pré-industrial que vai do final do seculo XVIII até os anos de 1845. Seu pontificado inicia já no fervedouro das disputas intelectuais marxistas, que advoga a planificação econômica e a abolição da fé sob todos os aspectos para que a sociedade adquira a perfeição nas suas relações as mais diversas, principalmente a econômica, a cultural, a social e a política. A “Rerum novarum” é o ponto alto do papado de Leão XIII. É frequente referir-se ao seu pontificado pelas suas doutrinas econômicas, nas quais ele argumentou a falha do capitalismo e do comunismo, no que tange o seu pensamento geral sobre a vida das pessoas. Sobre os direitos e deveres do capital e trabalho, e suas implicações nas relações sociais, a “rerum novarum” é que veio introduzir a ideia da subsidiariedade no pensamento social católico/universal. Lançada em 1891, quando Marx estava no auge da propaganda do seu pensamento (embora falecesse em 1883), esta encíclica marcou o início da polarização entre duas correntes econômicas distintas e a sistematização do pensamento sócio-econômico católico, condensado no vulgarmente chamada “Doutrina social da Igreja Católica”. Tal foi a sua importância que influenciou fortemente a criação do Corporativismo e da Democracia cristã. Que Leão XIII era premido pela nova ordem de coisas à expressar o pensamento católico, ele mesmo o diz na introdução da enciclíca:
“A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da indústria, os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito”.
Era a Igreja falando após cinquenta anos da falácia comuno-socialista de Marx e Engels, e o colápso de uma ordem pré-estabelecida que já anunciava desde há muito a sua ruptura. Essas rupturas de pensamento e doutrina foram enunciadas desde o século XVIII, com o iluminismo; e no século XIX, com o sepultamento definitivo do feudalismo agro-pastoril na velha Europa. Eram esses os bastiões que vinham mantendo o poder católico no seu pedestal. Também pode-se dizer que a construção de uma “nova ética” pelos luteranos e calvinistas, no século XVI e XVII, também ajudou nessa confecção do pensamento sócio-político construído no dealbar do século XIX. A ética protestante presumia que os bens acumulados na terra era o sinal visível da graça divina; já a ética católica, por outro lado, que dependia dos senhores feudais para manter seu poder, presumia na sua “doutrina da salvação” o fazer o caminho pelo bem e o respeito aqui na terra aguardando a recompensa no céu.
De fato creio que Leão XIII só encontra paralelo na discussão social e política, com o o papa João XXIII. O Beato Papa João XXIII, nascido Angelo Giuseppe Roncalli, em Sotto Il Monte, aos 25 de Novembro de 1881 [—†.03.06.1963] foi eleito no dia 28 de outubro de 1958, após o conturbado papado de Pio XII. Considerado um papa de transição, depois do longo pontificado de Pio XII e eleito por força da sua idade, paroxalmente ele revolucionou a Igreja Católica na contemporaneidade ao convocar o Concílio Vaticano II, que visava pastoralmente explicar os dogmas católicos ao mundo hodierno e aproximar essa mesma igreja desse mundo em transformação.
Relendo a velha carta leonina aos fieis vemos como é “o eterno caminhar da Igreja”. Fosse célere e fugaz não teria feito o aniversário de quase dois mil anos. Ainda o espírito é a força motriz que a faz caminhar.
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